O 6º ANO NO TIMOR LESTE

No último dia 9/10, em uma atividade de estudo do meio, os alunos do 6º ano conversaram com Juliana Soares, professora e contadora de histórias timorense e a doutoranda Márcia Cavalcante, professora, especializada em literatura do Timor Leste. Eles ouviram o mito de criação da ilha de Timor, que está ligado a um crocodilo, animal muito importante por lá.

Reza a lenda que um dia, depois de muitas atribulações, um jovem e um crocodilo lançam-se ao mar e exploram juntos o oceano até que o crocodilo decide fixar-se num determinado local e transforma-se na ilha de Timor.

Leia essa história abaixo, pela versão do escritor timorense Luís Cardoso.

 

O CROCODILO QUE SE FEZ ILHA

Luis Cardoso

Nunca tinha chovido tanto e de uma só vez naquelas paragens. As águas subiram, inundaram a terra, aproximaram-se dos céus onde deixaram sementes de Caleic, germinando trepadeiras, amarrando o mar e a terra ao infinito. Foi o tempo em que tudo estava ligado, o universo em gestação. Os seres misturavam-se e percorriam lugares outrora restritos apenas a alguns. A água fizera o que os homens alguma vez ousaram, diluindo as fronteiras terrestres. Ninguém estava classificado consoante os locais onde habitava ou de acordo com os seres que digeria.

No fim da estação das chuvas, quando as águas começaram a secar, todos os animais, movidos pelo instinto de sobrevivência foram recuando para os seus anteriores nichos. Os pequenos crocodilos, buliçosos e irrequietos, sentindo que o mar se encurtava cada vez mais, foram deixando os locais por onde tinham andado em busca de alimentação.

Mas aquele velho crocodilo, que nunca tinha feito incursões para além das águas paradas, onde esperava os incautos que passavam, mostrava-se renitente em abandonar aquele recanto da terra onde passavam todos os animais da Terra, inclusive o homem, o mais erecto de todos e nem sempre o mais correcto. A prole bem tentou demovê-lo dessa teimosia. Ele já não queria mais regressar para o seu mar. Por mais que insistissem, dizendo que em breve, com a seca, morreria de calor e com fome, tencionava ficar. Dizia ser a natureza o seu melhor aliado, que com ele sempre fora benevolente. Mais do que os da sua espécie que se devoram a si mesmos. Com tal argumento convenceu-os a irem-se embora. O clã entendeu a sua atitude como sendo sinal da sua resignação ao fim próximo. Há um momento único no tempo de cada um para decidir a forma mais digna de morrer. Um grande sáurio arrasta-se no chão mas nunca no tempo. Os pequenos choraram lágrimas de crocodilo pelo fim do progenitor. Como não estava mais nenhum animal presente, eram genuínas as lágrimas choradas. Arrastaram-se para o mar e o velho crocodilo foi ficando cada vez mais distante e abandonado. O acaso fez com que tivesse passado por ali uma menina em busca dos pais, provavelmente engolidos pelo mar. E, vendo o velho crocodilo desfeito em lágrimas, e sem distinguir o falso do verdadeiro, aproximou-se do moribundo e perguntou-lhe se precisava de ajuda:

– Leva-me até ao mar. Prometo entregar-te aos teus pais!

Ela já não pensou em outra coisa se não pô-lo a salvo.

– A vida de quem quer que seja deveria ser tida em conta para além dos seu múltiplos actos, nefastos ou providenciais! – pensou. Um pensamento grande demais para as suas pequenas forças. Havia uma desproporção entre o que podiam os seus braços e o peso do colosso moribundo. Os olhos do crocodilo já não choravam. A menina foi buscar as cordas da trepadeira e enrolou-as ao longo do corpo daquele que personificava o horror sobrenatural. Tentou puxar a ponta da corda mas nem um passo deu adiante. Foi pedir ajuda aos outros animais, mas foi o macaco quem se apressou a responder:

– Que morra aquele que tanto mal nos fez!

Assustou-se com a violenta resposta, mas não desistiu de procurar ajuda. Lembrou-se daquele búfalo branco, que tinha domesticado para a ajudar no cultivo do arroz. Quando chegaram ao local, o búfalo franziu os olhos, levantou as sobrancelhas, deu uma cornada no ar soltando espuma branca pelos cantos da boca:

– Não, tudo menos isso! Foi ele quem devorou os teus pais!

Ela nem vacilou perante tal revelação. Tentou um último argumento, o da morte digna, dizendo que o crocodilo estava velho e cada um deveria morrer no sítio onde vivia. O búfalo condescendeu e só deu pelo engano quando o moribundo, dentro de água, pareceu rejuvenescer. Sentindo-se traído, o búfalo fez o que achava justo: foi-se embora. Voltou a ser bravo, a única condição que lhe garantia respeito e sobrevivência. O crocodilo, vendo o desfecho de uma amizade desfeita, quis recompensar a sua salvadora pela perda de um amigo, dizendo ser ele verdadeiro; não era tão traiçoeiro como a fama das suas lágrimas.

– Pula para o meu dorso! – disse o crocodilo, com voz paternal. Anoitecera. E, já sem a vigilância de olhos de outros animais e a coberto da distância e da escuridão da noite, que devolvia a cada ser o pior dos seus instintos, ele tencionava comer aquela criança, salgada e temperada pelos ares do mar. Está na natureza do crocodilo comer as suas presas. A menina caíra na armadilha das lágrimas do moribundo, esquecendo-se de que também eram de um crocodilo.

Mas as forças do velho sáurio foram-se esgotando na jornada. Não conseguia mover a cauda, nem mesmo uma pata. O corpo que tão bem o tinha servido, na hora em que mais precisava dele, traía-o. Encalhou, no seu trágico destino. Rendido à evidência da morte, quis a grandiosidade. As suas patas alongaram-se e cravaram bem fundo nos corais. O corpo distendeu-se e as placas do dorso ganharam elevação, formando montanhas atapetadas de densas florestas de sândalo. Uma voz surgiu do ainda crocodilo quase terra:

– Sou velho e vou morrer. Tu és linda e habitarás este corpo onde foram enterrados os teus pais. Brevemente chegarão os estrangeiros. Uns príncipes em busca da tua beleza, e outros, mercadores do sândalo.

Quando ouviu o último suspiro do crocodilo, ela respirou fundo como se quisesse dar à luz, e viu o Sol nascer no mar, iluminando a ilha inteira, finalmente livre do pesadelo da noite traiçoeira. E chamou-lhe Timor.

do original de Luís Cardoso, publicado no suplemento da Revista Visão nº480 de 16.05.02; versão adaptada